No dia 18 de junho, o mundo celebra o Dia do Orgulho Autista — uma data que vai além da conscientização: ela reafirma a identidade, promove o respeito pelas diferenças e nos convida a ampliar o olhar sobre a neurodiversidade. Mas, para quem atua diretamente com pessoas autistas — médicos, terapeutas, educadores —, essa ampliação precisa ser mais do que simbólica. Ela precisa ser prática, profunda e atualizada.
Compreender o autismo em sua singularidade é fundamental. Mas compreender apenas o autismo é insuficiente. Isso porque o Transtorno do Espectro Autista (TEA) raramente se apresenta de forma isolada. De acordo com estudos recentes, cerca de 40% das pessoas com autismo também possuem Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), enquanto outras tantas apresentam dislexia, discalculia, transtornos motores, deficiência intelectual ou mesmo altas habilidades/superdotação. Saber identificar essas comorbidades não é apenas um detalhe clínico — é o que define a qualidade e a eficácia da intervenção.
Essa complexidade foi destacada em uma fala do neurologista Dr. Marcelo Masruha, especialista em neurologia infantil e autor de diversas obras sobre o tema, durante uma live recente com os organizadores do Congresso Aprender Criança:
“As pessoas têm que entender que se só estudarem o autismo, não vão atender bem o seu paciente. Porque um terço dos pacientes com autismo têm TDAH, e dois terços têm manifestações compatíveis com TDAH que não preenchem os critérios. Pessoas com autismo têm dislexia, têm discalculia, têm transtornos motores, têm deficiência intelectual. Se você vai a um congresso só de autismo, e não se discute essa amplitude, você não está se atualizando como deveria.”
O alerta é claro: tratar bem uma criança ou adolescente com autismo exige entender o neurodesenvolvimento como um campo entrelaçado, dinâmico e multifacetado. Esse entendimento envolve reconhecer que o cérebro não funciona em compartimentos isolados — e que cada função, cada habilidade e cada desafio se relaciona com muitos outros.
Dr. Renato Arruda, também neurologista e referência em TDAH e TEA, reforça esse pensamento:
“Quem só sabe de autismo, não sabe de autismo. O neurodesenvolvimento na infância e na adolescência, por definição, tem uma interface muito grande com vários outros domínios.”
É por isso que eventos como o Congresso Aprender Criança se tornaram fundamentais. Considerado o maior da América Latina sobre transtornos do neurodesenvolvimento, o congresso propõe uma abordagem verdadeiramente integrada, reunindo profissionais da saúde e da educação para discutir os espectros — no plural — que marcam a infância e a adolescência neuroatípicas. Ao longo de três dias de imersão, são abordados temas como autismo, TDAH, dislexia, altas habilidades, transtornos motores, distúrbios de linguagem e muito mais. Tudo isso a partir de evidências científicas atualizadas, com foco prático e transdisciplinar.
Essa visão ampliada não é apenas uma escolha metodológica. Ela é uma necessidade urgente frente ao aumento expressivo de diagnósticos de autismo no mundo e no Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 70 milhões de pessoas no mundo vivem com TEA. Nos Estados Unidos, dados recentes do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) mostram que uma em cada 31 crianças com menos de 8 anos tem autismo — um salto significativo em relação a anos anteriores. No Brasil, embora ainda haja subnotificação, estima-se que o número de pessoas autistas possa chegar a 6,9 milhões.
Diversos fatores explicam esse crescimento: a melhora nas ferramentas diagnósticas, maior conscientização da sociedade, mudanças nos critérios classificatórios (como no CID-11), além de transformações ambientais e comportamentais que tornam mais visíveis certos traços do espectro.
Mas o aumento no número de diagnósticos também desafia a formação dos profissionais. Como atender bem uma criança autista sem considerar que ela também pode ter dificuldades de aprendizagem? Como desenvolver um plano educacional se não se reconhecem as possíveis altas habilidades? Como adaptar um tratamento sem avaliar possíveis comorbidades e transtornos de coordenação motora, que interferem nas interações sociais e no desempenho escolar?
Essas perguntas não são retóricas. Elas são o ponto de partida para uma prática clínica e educacional mais consciente, ética e eficaz. E a resposta passa, inevitavelmente, por formação continuada.
Celebrar o Dia do Orgulho Autista é celebrar as múltiplas formas de existir e de aprender. Mas também é um chamado para que abandonemos uma visão limitada, compartimentalizada e ultrapassada do neurodesenvolvimento. A criança com autismo é muito mais do que o seu diagnóstico. Ela pode ser também uma criança com TDAH, com dislexia, com habilidades artísticas excepcionais ou com desafios motores que ainda não foram reconhecidos.
Como disse o Dr. Masruha, “não dá mais para estudar o autismo sem estudar todo o resto”. E o Congresso Aprender Criança tem sido, há quase duas décadas, o espaço onde esse “todo o resto” é debatido com profundidade, responsabilidade e abertura ao novo. Porque compreender o autismo exige ir além do autismo.
E é exatamente aí que começa o verdadeiro compromisso com a inclusão.